Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.
Guardo o Príncipe que me realiza sonhos.
O Príncipe é salvador e corta-caminhos:
ele encarna as projeções do que não sou, mas quero ser.
O Príncipe é Minha Expectativa enfalada num corpo de homem.
Guardo escadas de acesso:
uma se chama Inveja, a quem sirvo pratos de crua Comparação. De seus degraus, miro corpos de outras mulheres.
E miro espelhos refletidos com meu próprio corpo.
Guardo minha voz esganiçada, magra, sem jeito, buscando asas de canto.
Guardo rumos e rimas. Salões de dança e canção sem ouvintes ou bailarinas.
Sapatilhas toscas, saias rodadas, pernas abertas e arriadas.
Guardo cacos e paredes riscadas.
Tecidos rotos. Tripas. Tropas.
Trauma. Trama. Drama.
Gente acorrentada às minhas ausências.
Guardo o Medo Do Descanso.
Guardo a Grande Mãe. A terra fértil que alimenta. Os gozos engolidos.
Os jorros liberados.
Líquidos brancos e férteis:
o leite que brota. O ventre que gesta.
Guardo unhas vermelhas. Batom vermelho. Carne vermelha.
Bestas e bostas: entranhas.
Guardo as mãos que não peguei.
As mãos que soltei.
As mães que já fui das artes que fiz.
Guardo cacau, cana e café.
Cadernos e canetas.
Caminhos para correr e cair: cicatriz.
Guardo malas.
Mapas. Xícaras. Cinzeiros. Colar de contas.
E contas normais, feitas do dinheiro que me falta.
Guardo pensamento selvagem. Garimpos a céu aberto. Pedras soltas por rios de mercúrio e sanidade.
Animais desencontrados de seu corpo humano:
vagamos soltas e juntas por matas ocultas.
Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.
Uma escada discreta chamou-me ontem, dizendo chamar-se Vida,
sugerindo que por ela consigo entrar em outros porões. Ela me disse que há porões de outras pessoas e que,
às vezes, no estalo do beijo, as paredes se quebram
e os porões se abraçam.
Os porões copulam, sobrepostos.
Copulam, sobretudo, porque o Vazio há de preencher-se
com outras escadas, quartos, caminhos, poços de lama. Terras devolutas a um Estado inexistente – territórios de ninguéns.
É assim que os nadas se transam: mutantes, loucos e esfomeados.
O Divino também guarda porões
onde descansam magos ayahuasqueiros, druidas do antigo,
alquimistas do hermético, santos copistas.
Onças velam seus restos, pois nada sobra nos abertos daqui:
tudo se come com precisão e eficiência: sabedorias em transmutação.
Das pedras dos porões, pinga cal e diversão. Gnomos se embebedam nas miudezas. Vejo o centro de meu pé direito parir fadas e duendes travestidos de besouros e libélulas.
É tudo muito possível: não há regra nem forma nem limite no calor dos porões.
Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.
Há Vazio: ausência-tronco que se faz no que quero.
Há eu-só: desformia em palco para teatros feitos de pele, cabelo e suor.
Tudo meu, que pertenço ao Porão Do Mundo.
As paredes do porão são feitas ora de palavras, ora de ideias:
meus porões são o que penso de mim: historinhas que me invento.
As caixas que me faço.
As coisas que pretendo.
Os seres que encarno.
Os quentes que animo.
As crias que intento.
Porão-útero, pérola-mãe: devora-me, desvira-me: amorfa e úmida, sou matéria encarcerada por reinos de Natureza Humana.
Vale do Capão/BA | 3 de março de 2022
Texto feito durante a oficina Sobre a escrita que há em nós, com Aline Bei
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