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Foto do escritorliardomingues

ONDE OS FUNDOS SE ENCONTRAM – ou o que guardo nas fendas

Atualizado: 5 de mai. de 2022






Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.

Guardo o Príncipe que me realiza sonhos.

O Príncipe é salvador e corta-caminhos: ele encarna as projeções do que não sou, mas quero ser. O Príncipe é Minha Expectativa enfalada num corpo de homem.

Guardo escadas de acesso:

uma se chama Inveja, a quem sirvo pratos de crua Comparação. De seus degraus, miro corpos de outras mulheres.

E miro espelhos refletidos com meu próprio corpo.

Guardo minha voz esganiçada, magra, sem jeito, buscando asas de canto.

Guardo rumos e rimas. Salões de dança e canção sem ouvintes ou bailarinas.

Sapatilhas toscas, saias rodadas, pernas abertas e arriadas.


Guardo cacos e paredes riscadas.

Tecidos rotos. Tripas. Tropas. Trauma. Trama. Drama. Gente acorrentada às minhas ausências.

Guardo o Medo Do Descanso.

Guardo a Grande Mãe. A terra fértil que alimenta. Os gozos engolidos.

Os jorros liberados.

Líquidos brancos e férteis: o leite que brota. O ventre que gesta.

Guardo unhas vermelhas. Batom vermelho. Carne vermelha.

Bestas e bostas: entranhas.


Guardo as mãos que não peguei.

As mãos que soltei. As mães que já fui das artes que fiz.

Guardo cacau, cana e café.

Cadernos e canetas. Caminhos para correr e cair: cicatriz.

Guardo malas. Mapas. Xícaras. Cinzeiros. Colar de contas. E contas normais, feitas do dinheiro que me falta.

Guardo pensamento selvagem. Garimpos a céu aberto. Pedras soltas por rios de mercúrio e sanidade.

Animais desencontrados de seu corpo humano:

vagamos soltas e juntas por matas ocultas.



Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.


Uma escada discreta chamou-me ontem, dizendo chamar-se Vida,

sugerindo que por ela consigo entrar em outros porões. Ela me disse que há porões de outras pessoas e que,

às vezes, no estalo do beijo, as paredes se quebram

e os porões se abraçam.


Os porões copulam, sobrepostos.

Copulam, sobretudo, porque o Vazio há de preencher-se

com outras escadas, quartos, caminhos, poços de lama. Terras devolutas a um Estado inexistente – territórios de ninguéns.

É assim que os nadas se transam: mutantes, loucos e esfomeados.

O Divino também guarda porões

onde descansam magos ayahuasqueiros, druidas do antigo,

alquimistas do hermético, santos copistas.

Onças velam seus restos, pois nada sobra nos abertos daqui:

tudo se come com precisão e eficiência: sabedorias em transmutação.

Das pedras dos porões, pinga cal e diversão. Gnomos se embebedam nas miudezas. Vejo o centro de meu pé direito parir fadas e duendes travestidos de besouros e libélulas.

É tudo muito possível: não há regra nem forma nem limite no calor dos porões.


Tenho um porão de mulher e guardo nele minhas fantasias de menina velha.


Há Vazio: ausência-tronco que se faz no que quero.

Há eu-só: desformia em palco para teatros feitos de pele, cabelo e suor.

Tudo meu, que pertenço ao Porão Do Mundo.

As paredes do porão são feitas ora de palavras, ora de ideias:

meus porões são o que penso de mim: historinhas que me invento.

As caixas que me faço.

As coisas que pretendo.

Os seres que encarno.

Os quentes que animo.

As crias que intento.

Porão-útero, pérola-mãe: devora-me, desvira-me: amorfa e úmida, sou matéria encarcerada por reinos de Natureza Humana.



Vale do Capão/BA | 3 de março de 2022

Texto feito durante a oficina Sobre a escrita que há em nós, com Aline Bei

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